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A relação entre a matemática e a critividadade. Erika Azevedo, Maria Alice Fontes

1. Como é o ensino da matemática?

A palavra matemática vem do grego matemathike, que significa “ensinamentos”. Matemática é uma ciência e um sistema de pensamento formal, e como tal, procura reconhecer, classificar e explorar padrões que encontramos na natureza. Desde as listas dos tigres e zebras, a contagem das pétalas nas flores, a migração de pássaros até fenômenos e ciclos biológicos, astronômicos, moleculares, etc. (Onodera).

De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino fundamental, com o ensino da matemática nas escolas, pretende-se ajudar o aluno a “compreender o mundo à sua volta e vê-la [a matemática] como área do conhecimento que estimula o interesse, a curiosidade, o espírito de investigação e o desenvolvimento da capacidade para resolver problemas”.

O ensino da matemática é visto como forma muito além da transmissão de conteúdo, mas de desenvolvimento do pensamento lógico, do raciocínio dedutivo, de inúmeras habilidades previstas para a autonomia crítica do indivíduo em tarefas do cotidiano e como agente de cidadania. É previsto nos PCN que a diversidade sociocultural de nosso país seja levada em consideraçãono ensino da matemática. A organização do conteúdo é feita em blocos: números e operações (aritmética e álgebra); espaço e formas (geometria); grandezas e medidas (aritmética, álgebra e geometria), e tratamento de informação (estatística, combinatória e probabilidade). Esta forma tem como intuito privilegiar as intra-conexões das áreas da matemática e com outras disciplinas estimulando que os professores sejam “criativos” e trabalhem com colegas e profissionais de outras áreas para enriquecer o currículo no desenvolvimento de projetos que levem o aluno para a aplicação no mundo real.

2. Quais são as fases que a criança passa até adquirir o domínio da matéria?

Segundo Piaget (1967), o desenvolvimento cognitivo se dá através de quatro grandes estágios:

1. Sensório motor (até os 2 anos aproximadamente) é a fase quando o aprendizado do mundo se dá através dos sentidos e das sensações através dos sistemas de percepção e do movimento. Nesta fase, a primeira noção “matemática” que aparece é a noção de permanência de objeto, quando uma criança sabe que um objeto que sumiu de cena continua existindo. Esta noção é essencial para formação e consolidação da noção de número.

2. Pré-operacional (até os 7 anos aproximadamente) é o estágio do advento da linguagem onde a criança se apropria do mundo pelos símbolos e o seu imaginário. Nesta etapa, o que temos de mais matemático – além da continuidade das explorações espaciais do estágio anterior – é o desenvolvimento das noções de quantidade, de maior e menor e das correspondências comparativas. Nesta idade, a criança desenvolve as noções numéricas concretas.

3. Operacional/Concreto (até 11 anos aproximadamente) são construídos conhecimentos lógicos baseados na experiência concreta do mundo. Aqui temos a noção de permanência de quantidade onde a criança já consegue fazer uma representação interna de quantidade que se sustente. Ou seja, ela consegue admitir que, embora formas sejam diferentes (e.g. argila em forma de bolinha e uma bolinha igual transformada em salsicha), duas coisas podem representar a mesma quantidade. Assim, uma criança consegue manipular as noções de quantidade de uma receita, desde os ingredientes até o resultado final.

4. O último grande estágio do desenvolvimento, o estágio Operacional formal ou Abstrato é o momento, a partir de 10 ou 11 anos, quando representações simbólicas e mentais sobre quantidade e conceitos matemáticos são possíveis, pois a partir deste momento, o indivíduo consegue manipular noções mais abstratas como de volume e vários outros conceitos não visíveis ou menos tangíveis para crianças menores (Berninger & Richards, 2002).

Nos processos de desenvolvimento cognitivo descritos acima, vários são os processos mentais em jogo no desenvolvimento destas habilidades matemáticas. “Nos primeiros dois estágios, o objeto é internamente representado e codificado para informação quantitativa. Nos próximos dois estágios, rotinas mentais são criadas para operar nessas representações quantitativas – primeiro em termos de manipulação concreta e depois em termos abstratos” (Berninger & Richards, 2002).

3. Quais são as áreas do cérebro ativadas durante a aprendizagem e ou execução de tarefas matemáticas?

O giro angular é uma região do cérebro no lobo parietal, que se encontra perto da borda superior do lobo temporal; ele está envolvido em uma série de processos relacionados à linguagem, processamento de números e cognição espacial, recuperação da memória, atenção e teoria da mente. É área de Brodmann 39 do cérebro humano.

O giro angular é a parte do cérebro associada com funções complexas da linguagem, isto é, leitura, escrita e interpretação do que está escrito. Lesão nesta parte do cérebro podem apresentar sintomas que incluem alexia (incapacidade de ler), acalculia (incapacidade de fazer operações aritméticas), agrafia (incapacidade de copiar) e confusão entre esquerda e direita.

Apesar de existir uma área relacionada a matemática, seu processamnto não é um evento isolado do cérebro, mas constitui-se a partir de diversas outras áreas cerebrais formando um domínio quantitativo, um sistema representacional usado para descrever, explicar, e operar sobre as estruturas do mundo físico e resolver problemas do cotidiano através do estabelecimento de magnitude e quantidade aos objetos, codificando números e quantidades. Este “cérebro computacional” ou matemático, é multilinguístico e usa códigos quantitativos, visuais, motores e verbais (Berninger & Richards, 2002).

4. Qual a relação da matemática com a criatividade?

Temida e muitas vezes reduzida à rotina tediosa de fazer contas (Otaviano, Alencar & Fukuda, 2012) – tarefas que parecem pouco criativas ou interessantes – a matemática, guarda uma relação intrínseca com a criatividade.

De fato, segundo Neil Preece, artista sul-africano que foi também professor de matemática e artes, “um matemático de verdade está constantemente realizando descobertas, buscando conexões improváveis entre diversas áreas de seu próprio conhecimento e se aventurando em novos mares” (2016), atividades muito mais excitantes do que o aluno comum poderia esperar em sua rotina escolar.

Não há, em tese, qualquer razão para segregar a criatividade da matemática. De fato, as pesquisas em neurociência, apesar de ainda estarem no início das investigações sobre a criatividade, já podem afirmar que “o cérebro de pessoas criativas e inteligentes provavelmente se diferenciam pela densidade de conexões sinápticas contribuindo para uma estrutura capaz de fazer associações enriquecida” (Duch, 2007). Na visão neuro-cognitiva da criatividade apresentada por Duch “em nível neural, a criatividade precisa de dois componentes: 1) atividade neural distribuída de maneira caótica (flutuando) limitada pela força de associações entre sub-redes codificando diferentes conceitos responsável pela imaginação e 2) a filtragem de resultados interessantes, amplificando certas associações, descobrindo soluções parciais que podem ser úteis mediante os objetivos traçados. A filtragem é baseada em expectativas primárias, associações em formação, [e] emoções suscitadas” (Duch, 2007).

No ser humano reconhecemos uma capacidade inata, ou seja, um aparato cerebral para resolução de problemas complexos tais como os abstratos, habilidades de desenvolvimento de conceitos, de reunir experiências anteriores e analisa-las de maneira adequada (Teixeira, 2011). Este é o cérebro computacional do qual falamos acima. 

Então não deveria ser de se espantar que figuras como M.C. Escher e Leonardo Da Vinci tenham unido de forma tão natural esta matéria e a arte! Escher, que não tinha qualquer conhecimento formal da matemática, experimentou muito com desenhos de divisões simétricas do plano. Suas tapeçarias e pavimentações espantam matemáticos no mundo inteiro pela meticulosidade e perfeição matemática das formas. Escher também esteve muito à vontade para brincar com a perspectiva e criar figuras impossíveis (Taylor). Da Vinci não representava nada apenas pelas tintas, mas realizava estudos científicos de tudo o que seria representado. Para ela, criatividade e ciência andavam juntos, em especial a matemática. “o belo não decorre apenas das coares e das sensações, mas também das relações matemáticas como proporções, simetrias e seção áurea para garantir formas harmônicas” (Sabba, 2004) como o que vemos nos trabalhos destes dois artistas e tantos outros.

5. Quais os desafios do ensino da matemática?

Mas como buscar este caminho se os próprios alunos não se sentem capazes de compreender matemática de maneira mais independente do professor? (Stodolsky, Salk & Glaessner, 1991) Seriam os alunos capazes de interagir com a matemática de forma autônoma e criativa? De acordo com Sir Ken Robinson - educador Britânico, veemente defensor de uma revolução na educação que inclua as artes como parte importantíssima do currículo, intrínseca às outras matérias e não correndo em paralelo – criatividade é “o processo de ter ideias novas que detenham valor – muito frequentemente através da interação entre diferentes disciplinas e não dentro de cada uma delas de forma isolada”. Não era sobre isso que Preece falava sobre “aventurar-se em novos mares”?

D’Ambrosio e Silva (2015) fazem uma reflexão acerca do que chamam de insubordinação criativa – “ações de insubordinação criativa como recurso diante da burocracia educacional” (p.2), em especial no campo do ensino da matemática como forma de questionar o modo como a matemática é apresentada e transformar os alunos em “atores” da matemática. A aposta é na capacidade dos alunos de, através da mediação de professores que funcionam muito mais como guias do que como detentores do saber, descobrir a matemática por si só. Sabba (2004), em seu trabalho de mestrado, baseado na obra de Da Vinci, faz uma aposta: Propomos, incialmente, não a modificação do sistema escolar, mas sim o uso dos princípios Vincianos como orientadores do processo de apreensão de conhecimento das pessoas. (...) o que realmente almejamos é mostrar às pessoas como aproveitar a criatividade; as dúvidas; e os conhecimentos diversos na própria busca do conhecimento.

Os princípios Vincianos são: curiositá, ou seja, um investimento na curiosidade na natural do aprendiz; connessione, a abertura à multidisciplinaridade e nas inter-relações entre as diversas matérias para se obter o conhecimento; sfumato, ou seja, aceitar as incertezas e ambiguidades contidas nesse conhecimento; dimostrazione, a experiência como prova de teorias; sensazione ou sentidos, como guias do aluno, em toda sua multi-sensorialidade; e, finalmente, corpolitá, a percepção dos limites do corpo e das percepções, aproveitando-os ao máximo para chegar ao conhecimento. Seria mesmo possível pensar estes seis princípios em uma sala de aula regular?

6. Histórias de matemática e criatividade. Como fazer?

Em estudo realizado por Bertini (2015), uma professora de matemática foi acompanhada durante as aulas de matemática que ela lecionava para uma turma do quarto ano (ou seja, para crianças de 8 a 9 anos) em uma escola brasileira, para investigar justamente a viabilidade do uso de tarefas investigativas no ensino de Matemática. Através de um trabalho de pesquisa e ação onde a pesquisadora intervinha junto da professora como mediadora das reflexões desta sobre o trabalho que vinha executando, este novo método foi colocado em prática a partir da noção de que a professora seria o ponto de partida, ou seja, seria quem colocaria uma questão para os alunos, mas seriam os alunos que definiriam como dar sequência, como problematizar essa questão e achar soluções.

É claro que colocar em prática uma proposta como essa não foi fácil. As dúvidas da professora sobre o momento certo de valorizar as novas descobertas ou focar a discussão para uma tarefa específica eram constantes, mas é importante notar que, estavam justamente nesses caminhos não supostos as oportunidades para o desenvolvimento da criatividade. Há vários obstáculos para este tipo de intervenção, é verdade, como por exemplo o tempo fechado e restrito de aula numa grade curricular como a da maioria das escolas, e as dificuldades em se estabelecer um ritmo com os alunos para que estes “pegassem o jeito” desse tipo de atividade investigativa e aberta. Contudo, os ganhos deste tipo de atividade, segundo observado pela pesquisadora, foram imensos: através deste trabalho de construção de conhecimento junto dos alunos, houve um incentivo à autonomia e criatividade dos alunos. Estes também desenvolveram habilidades de argumentar e registrar seu pensamento [passando a ter a autoria de seu processo de aprendizado]; e através da busca de estratégias diferenciadas para solucionar as questões, entraram em contato com conceitos verdadeiramente matemáticos (Bertini, 2015).

Veja como esse processo levado a cabo por esta professora e acompanhado pela pesquisadora está em total sintonia não só com as experiências das mentes mais incríveis e criativas como as dos artistas aqui citados, mas também com o modelo neuro-cognitivo proposto por Duch (2007) acima. Considerando como descrito que a criatividade precisa de uma atividade neural até certo ponto caótica – a pergunta aberta lançada pela professora – limitada por associações possíveis e conceitos imaginados em cima daquilo que havia sido proposto – na mão dos alunos que devem buscar as soluções – certamente a filtragem que a própria questão estabelece como possível e que dá margem à imaginação encontra na abertura de caminhos a possibilidade de soluções criativas e inusitadas além de uma imersão afetiva no conhecimento.

Do mesmo modo que esta experiência de Bertini (2015), Silva (2015) realizou um estudo sobre o papel pedagógico do uso de artes e mídia digital para o currículo de matemática de escolas na província de Ontário no Canadá. Ele parte de uma visão mais ampla da noção de “performance” acadêmica em matemática, contando com o usa de ferramentas digitais para trazer significado a conceitos matemáticos. Desta forma, ele analisou 22 trabalhos de alunos do quarto ao sexto ano de escolas públicas de Ontário que foram apresentados em um festival que promove esta nova linguagem chamada de DMP (digital mathematical performance, ou performance matemática digital). Ele observou que o uso de DMP foi muito bem aceito e difundido em especial como ferramenta pedagógica para os conceitos de geometria e senso espacial. Em conclusão, ele vê o uso desta metodologia como uma forma de trazer para o estudo da matemática a criatividade de volta que é categórica de experiência de aprendizagem multissensoriais.

Bibliografia:

BERNINGER, V. W. & RICHARDS, T. L. (2002). Brain literacy for educators and psychologists. Academic Press.

BERTINI, L. F. (2015). Ensino de matemática nos anos iniciais: aprendizagens de uma professora no contexto de tarefas investigativas. Bolema, Rio Claro (SP), v. 29, n. 53, p. 1201-1223, dez. 2015. ISSN 1980-4415. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1980-4415v29n53a20

BLUMENTHAL, G. Os PCN’s e o ensino fundamental em matemática: um avanço ou um retrocesso? http://www.somatematica.com.br/artigos/a3/ Acessado em 27 de março de 2016.

D’AMBROSIO, B. S. & LOPES, C. E. (2015). Insubordinação Criativa: um convite à reinvenção do educador matemático. Bolema, Rio Claro (SP), v. 29, n. 51, p. 1-17, abr. 2015. ISSN 1980-4415. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1980-4415v29n51a01

DUCH, W. (2007). Creativity and the brain. http://aer.sagepub.com/content/28/1/89.short. Acessado em 12 de Março de 2016.

ONODERA, M. M. http://www.ime.usp.br/~masaki/mat.html Acessado em 27 de Março de 2016.

OTAVIANO, A. B. N.; ALENCAR, E. M. L. S.; FUKUDA, C.C. Estímulo à criatividade por professores de matemática e motivação do aluno. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 16, Número 1, Janeiro/Junho de 2012: 61-69.

PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS [PCNs] (1998) http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/matematica.pdf Acessado em 27 de Março de 2016.

PIAGET, J. (1967). Seis estudos de psicologia. Cia Editora Forense.

SABBA, C. G. (2004). Reencantando a matemática e a Arte: o olhar humanísticocientífico de Leonardo Da Vinci, São Paulo, FEUSP. Dissertação de mestrado.

SILVA, R. S. R. (2015). O papel pedagógico das artes e das mídias digitais na prática do currículo matemático de Ontário. Bolema, Rio Claro (SP), v. 29, n. 53, p. 1043-1065, dez. 2015. ISSN 1980-4415. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1980-4415v29n53a13

TAYLOR, S. (2009). M. C. Escher: Images of Mathematics. Breezewood documentaries. https://www.youtube.com/watch?v=t-Gcz9FIB4w. Acessado em 05 de Março de 2016.
TEIXEIRRA, I. R. V. (2011). Uma abordagem biológica do desenvolvimento do cérebro, da inteligência e da aprendizagem. In: Neuropsicologia e aprendizagem. VALLE, L. E. L. R. & CAPOVILLA, F. C. Org. Ed. Novo Conceito Saúde. 3a ed.
 

2016-04-24 00:00:00

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